O PROJETO CONCRETO PENSADO tem por objetivo, através das materialidades públicas, urbanas, cotidianas e contemporâneas, refletir sobre os atravessamentos entre arte, política, poder e cultura. O projeto está sendo desenvolvido há quatro anos desdobrando-se em diferentes formas como, por exemplo, exposição de trabalhos (individuais e coletivos), apresentação e publicação de artigos em congressos, encontros e seminários e, mais recentemente, na elaboração e defesa da dissertação de mestrado A inscrição pública como manifestação antagônica no campo institucional da arte[1]. A tônica do projeto parte da perspectiva analítica e sintética que propõe e defende a incompletude dos significantes e seus respectivos significados, assim como da impossibilidade da existência individual dos mesmos em função de suas relações constitutivas (LACLAU & MOUFFE, 1985). Neste sentido, o projeto tem por objetivo analisar construções poéticas do espaço público através da percepção, identificação e reflexão das estruturas históricas e culturais que permitem suas materializações. Sendo assim, para a análise de tais construções é utilizado, como núcleo de trabalho, a produção/coleta de objetos, registros fotográficos, fílmicos, sonoros e escritos.
Na fase “dissertação”, o
projeto tinha como proposta investigar e refletir sobre a
possibilidade de existência do conceito de “inscrição pública[2]”
enquanto forma de manifestação poética e política geradora de algum tipo de
antagonismo no campo institucional da arte. A denominação do termo surgiu a
partir da perspectiva da existência de jogos constituídos por
discursos/manifestações que ora desempenhavam um papel hegemônico sendo então
“escritos”, ora desempenhavam um papel contra-hegemônico – sendo então
“inscritos”. Tais jogos formariam/formam nossa realidade. Em outras palavras,
sugeríamos que nossa realidade é constituída por intermináveis relações de
“escrever”, “inscrever”, “apagar” e que, no desenrolar deste jogo, inscrever poderia
vir a ser uma espécie de escrita, assim como escrever poderia tornar-se
inscrever, novamente, fazendo com que esta disputa tivesse como objetivo o
apagamento e a imposição das estruturas defendidas por cada projeto. Os
registros apresentados no trabalho formavam dois casos intitulados de “Estória”
(imagem 1 e 2) e “KD a Arte” (imagem 3 e 4).
Nestes casos a leitura poética partia do questionamento
claro e direto feito pela inscrição "estória" e "KD a arte?” a determinados
níveis de institucionalidade da arte como escultura/monumento/museu e seus
respectivos significados. Deste conceito tinha início um processo de dissecação
que procurava encontrar as camadas espaço/temporais que permitiam a potência
deste embate discursivo materializado.
Neste sentido que, retornando ao projeto, a
apresentação intitulada "Parte 12122013 | Memento Mori[3]" pretendeu refletir
sobre a possível finitude e processo de amputação – apagamento – que essas
relações discursivas sofrem como estratégia de manutenção de poder. A reflexão investigou
que, a partir destas amputações, nossas linguagens e construções carregam em
si, numa alusão à medicina, "membros fantasmas" que trazem consigo
uma potência crítica e antagônica. Essa ideia/metáfora de que os significados ou parte deles podem existir
nas construções como espécies de membros fantasmas defende que, mesmo sem
estarem física ou formalmente no registro/coleta, têm a potência de se
manifestarem nas diferentes instâncias perceptivas, sejam elas intelectuais ou
sensoriais. Essa manifestação seria garantida pelas seguintes premissas/postulados, a saber, (a) que significantes
são incompletos, (b) significantes não existem individualmente e (c) significantes
existem e se mantêm numa relação (LACLAU & MOUFFE, 1985).
Sendo assim, na próxima fase do projeto,
intitulada “doutorado”, o esforço consiste em tentar registrar/coletar e deslocar, em
variados suportes, estes desprendimentos poéticos que surgem dos encontros
discursivos dissensuais presentes em nosso cotidiano material. Nesta fase os
casos não mais precisarão ter origem ou relação direta (visível) com o campo da
arte. O que pretende-se é que, a partir da análise de seus atravessamentos
constitutivos (internos e externos), de seus deslocamentos espaço/temporais, e
do arranjo que venham a formar, enquanto coleção, eles dialoguem com o campo da
arte, assim como com outros campos, por exemplo, a filosofia, a literatura, a
história, a antropologia, a física, a engenharia, a lógica, a astrologia, a
religião...). Fundamentamos esta proposta na perspectiva apresentada por Luiz
Cláudio da Costa (2012) em seu artigo Poéticas
do arquivo: dispositivos de coleção na arte contemporânea, onde é
apresentado o argumento de que o acúmulo e uso dos mais diversos registros,
documentos e objetos, assim como seus deslocamentos de suporte, podem permitir
a formação de coleções que, através de sua heterogeneidade e mutação enquanto
signos que operam a inserção desta no campo da arte. Nas palavras do autor:
A importância das
metamorfoses incessantes dos signos quando esses se transferem de um suporte a
outro, quando eles repetem, interpretam, comentam ou traduzem imagens de outros
contextos, é uma característica da arte processual de coleção (COSTA, 2012, p.
674).
Desta forma, a partir da
construção desta coleção pretendemos identificar mais elementos do arquivo que
o projeto “Concreto Pensando” está reunindo. Não somente elementos
constituintes da coleção, mas, também, elementos constituintes deste arquivo.
Tentar descobrir quais regras não estão explicitadas, imediatamente, no
arquivamento, na indexação, na taxonomia e na economia destes
documentos/monumentos (FOUCAULT, 2000). Descobrir como o arquivamento dos
registros destas poéticas dissensuais permite a leitura das especificidades que,
historicamente, constituem a arte. História que aqui deve ser entendida como
tentativa de desvelamento de uma infinidade de traços silenciosos e fragmentos
da existência, não necessariamente expostos. (DELEUZE & GUATARRI, 2003).
Neste sentido, a atual fase
de levantamento topográfico que está sendo realizada objetiva registrar a
poética dissensual encontrada no cotidiano dos centros urbanos e transposta
para outros suportes.
O projeto Concreto Pensado assume por realidade dos casos/coletas
a concepção do filósofo Jacques Rancière. Nas palavras do autor:
Não há real em si, mas
configurações daquilo que é dado como nosso real, como objeto de nossas
percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre
objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam
o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual,
que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma
linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e
aparências, opiniões e utopias (RANCIÈRE, 2012, p.74).
Desta forma, ao defendermos
que a realidade é a versão ou relação significado/significante “vencedora” em
determinado contexto, garantimos a possibilidade de leituras que, ao perceber o
consenso, sejam capazes de identificar a poética dissensual, uma vez que, como
defende a filósofa Chantal Mouffe, também acreditamos que a neutralidade
política, principalmente na arte, não existe. Todos os trabalhos e construções
são alinhados com algum posicionamento (ou podem ser arquivados de alguma
forma). Nas palavras da autora:
Como la dimensión
de ‘lo político’ siempre está presente, nunca puede haber una hegemonía
completa, absoluta, no excluyente. En ese marco, las prácticas artísticas y
culturales son absolutamente fundamentales como uno de los niveles en los que
se constituyen las identificaciones y las formas de identidad. No se puede
distinguir entre arte político y arte no político, porque todas las formas de
prácticas artísticas o bien contribuyen a la reproducción del sentido común
dado – y en ese sentido son políticas –, o bien contribuyen a su deconstrucción
o su crítica. Toda las formas artísticas tienen una dimensión política (MOUFFE,
2007, p. 26).
Sendo assim, o projeto que aqui é apresentado,
seguindo os elementos expostos, pretende, dentro da perspectiva de arquivo,
através do registro/coleta identificar os atravessamentos que formam a poética
do dissenso. Pretendemos com isso
gerar uma reunião inicial de fragmentos que, por sua vez, gerarão, ao serem
(re)expostos e distribuídos para outros colecionadores, possibilidades não
lineares de leitura e construção de novos arquivos enquanto taxonomia de várias
ordens.
[1]
Dissertação defendida pelo autor em abril de 2013 no Programa de Pós-Graduação
em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2]
Conceito defendido construído e defendido na dissertação. Disponível em: http://www.bdtd.ufes.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2469
[3] Apresentação que faz parte do projeto Concreto Pensado ocorreu no evento Casa.Lab Infinitas, disponível em https://www.facebook.com/events/545405838878172/. Sobre o título da apresentação, a data, os números (12/12/2013) e a expressão latina (memento mori) servem como um tipo de indexação particular e pública.
[4] https://www.ufmg.br/museumuseu/bienal/jornal/museumuseu.pdf
MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. CALLE14, Bogotá | Colômbia, volume: 4, número 4, p. 13 – 25, 2010.
MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
[3] Apresentação que faz parte do projeto Concreto Pensado ocorreu no evento Casa.Lab Infinitas, disponível em https://www.facebook.com/events/545405838878172/. Sobre o título da apresentação, a data, os números (12/12/2013) e a expressão latina (memento mori) servem como um tipo de indexação particular e pública.
[4] https://www.ufmg.br/museumuseu/bienal/jornal/museumuseu.pdf
REFERÊNCIAS
COSTA,
Luiz Cláudio da. Poéticas do Arquivo: Dispositivos de coleção na arte
contemporânea. X Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em
Crítica Genética (APCG); novembro de 2010; PUCRS. Porto Alegre: Edipucrs; 2012.
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvin, 2003.
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvin, 2003.
DEUTSCHE,
Rosalyn. Agorafobia. Barcelona:
MACBA, 2008.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder. São
Paulo: Edições Graal, 2004.
________________.
Ditos e Escritos vol. II. Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
________________.
Ditos e Escritos vol. III. Estética:
Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense Universitária,
2009.
LACLAU, Ernesto. & MOUFFE.
Chantal. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso Books, 1985.
MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. CALLE14, Bogotá | Colômbia, volume: 4, número 4, p. 13 – 25, 2010.
MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.