7.12.14



O PROJETO CONCRETO PENSADO tem por objetivo, através das materialidades públicas, urbanas, cotidianas e contemporâneas, refletir sobre os atravessamentos entre arte, política, poder e cultura. O projeto está sendo desenvolvido há quatro anos desdobrando-se em diferentes formas como, por exemplo, exposição de trabalhos (individuais e coletivos), apresentação e publicação de artigos em congressos, encontros e seminários e, mais recentemente, na elaboração e defesa da dissertação de mestrado A inscrição pública como manifestação antagônica no campo institucional da arte[1].  A tônica do projeto parte da perspectiva analítica e sintética que propõe e defende a incompletude dos significantes e seus respectivos significados, assim como da impossibilidade da existência individual dos mesmos em função de suas relações constitutivas (LACLAU & MOUFFE, 1985). Neste sentido, o projeto tem por objetivo analisar construções poéticas do espaço público através da percepção, identificação e reflexão das estruturas históricas e culturais que permitem suas materializações. Sendo assim, para a análise de tais construções é utilizado, como núcleo de trabalho, a produção/coleta de objetos, registros fotográficos, fílmicos, sonoros e escritos.
Na fase “dissertação”, o projeto tinha como proposta investigar e refletir sobre a possibilidade de existência do conceito de “inscrição pública[2]” enquanto forma de manifestação poética e política geradora de algum tipo de antagonismo no campo institucional da arte. A denominação do termo surgiu a partir da perspectiva da existência de jogos constituídos por discursos/manifestações que ora desempenhavam um papel hegemônico sendo então “escritos”, ora desempenhavam um papel contra-hegemônico – sendo então “inscritos”. Tais jogos formariam/formam nossa realidade. Em outras palavras, sugeríamos que nossa realidade é constituída por intermináveis relações de “escrever”, “inscrever”, “apagar” e que, no desenrolar deste jogo, inscrever poderia vir a ser uma espécie de escrita, assim como escrever poderia tornar-se inscrever, novamente, fazendo com que esta disputa tivesse como objetivo o apagamento e a imposição das estruturas defendidas por cada projeto. Os registros apresentados no trabalho formavam dois casos intitulados de “Estória” (imagem 1 e 2) e “KD a Arte” (imagem 3 e 4).



Nestes casos a leitura poética partia do questionamento claro e direto feito pela inscrição "estória" e "KD a arte?” a determinados níveis de institucionalidade da arte como escultura/monumento/museu e seus respectivos significados. Deste conceito tinha início um processo de dissecação que procurava encontrar as camadas espaço/temporais que permitiam a potência deste embate discursivo materializado.
Neste sentido que, retornando ao projeto, a apresentação intitulada "Parte 12122013 | Memento Mori[3]" pretendeu refletir sobre a possível finitude e processo de amputação – apagamento – que essas relações discursivas sofrem como estratégia de manutenção de poder. A reflexão investigou que, a partir destas amputações, nossas linguagens e construções carregam em si, numa alusão à medicina, "membros fantasmas" que trazem consigo uma potência crítica e antagônica. Essa ideia/metáfora de que os significados ou parte deles podem existir nas construções como espécies de membros fantasmas defende que, mesmo sem estarem física ou formalmente no registro/coleta, têm a potência de se manifestarem nas diferentes instâncias perceptivas, sejam elas intelectuais ou sensoriais. Essa manifestação seria garantida pelas seguintes premissas/postulados, a saber, (a) que significantes são incompletos, (b) significantes não existem individualmente e (c) significantes existem e se mantêm numa relação (LACLAU & MOUFFE, 1985).
Sendo assim, na próxima fase do projeto, intitulada “doutorado”, o esforço consiste em tentar registrar/coletar e deslocar, em variados suportes, estes desprendimentos poéticos que surgem dos encontros discursivos dissensuais presentes em nosso cotidiano material. Nesta fase os casos não mais precisarão ter origem ou relação direta (visível) com o campo da arte. O que pretende-se é que, a partir da análise de seus atravessamentos constitutivos (internos e externos), de seus deslocamentos espaço/temporais, e do arranjo que venham a formar, enquanto coleção, eles dialoguem com o campo da arte, assim como com outros campos, por exemplo, a filosofia, a literatura, a história, a antropologia, a física, a engenharia, a lógica, a astrologia, a religião...). Fundamentamos esta proposta na perspectiva apresentada por Luiz Cláudio da Costa (2012) em seu artigo Poéticas do arquivo: dispositivos de coleção na arte contemporânea, onde é apresentado o argumento de que o acúmulo e uso dos mais diversos registros, documentos e objetos, assim como seus deslocamentos de suporte, podem permitir a formação de coleções que, através de sua heterogeneidade e mutação enquanto signos que operam a inserção desta no campo da arte. Nas palavras do autor:

A importância das metamorfoses incessantes dos signos quando esses se transferem de um suporte a outro, quando eles repetem, interpretam, comentam ou traduzem imagens de outros contextos, é uma característica da arte processual de coleção (COSTA, 2012, p. 674).

Desta forma, a partir da construção desta coleção pretendemos identificar mais elementos do arquivo que o projeto “Concreto Pensando” está reunindo. Não somente elementos constituintes da coleção, mas, também, elementos constituintes deste arquivo. Tentar descobrir quais regras não estão explicitadas, imediatamente, no arquivamento, na indexação, na taxonomia e na economia destes documentos/monumentos (FOUCAULT, 2000). Descobrir como o arquivamento dos registros destas poéticas dissensuais permite a leitura das especificidades que, historicamente, constituem a arte. História que aqui deve ser entendida como tentativa de desvelamento de uma infinidade de traços silenciosos e fragmentos da existência, não necessariamente expostos. (DELEUZE & GUATARRI, 2003).
Neste sentido, a atual fase de levantamento topográfico que está sendo realizada objetiva registrar a poética dissensual encontrada no cotidiano dos centros urbanos e transposta para outros suportes.

 






O projeto Concreto Pensado assume por realidade dos casos/coletas a concepção do filósofo Jacques Rancière. Nas palavras do autor:

Não há real em si, mas  configurações daquilo que é dado como nosso real, como objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências, opiniões e utopias (RANCIÈRE, 2012, p.74).

Desta forma, ao defendermos que a realidade é a versão ou relação significado/significante “vencedora” em determinado contexto, garantimos a possibilidade de leituras que, ao perceber o consenso, sejam capazes de identificar a poética dissensual, uma vez que, como defende a filósofa Chantal Mouffe, também acreditamos que a neutralidade política, principalmente na arte, não existe. Todos os trabalhos e construções são alinhados com algum posicionamento (ou podem ser arquivados de alguma forma). Nas palavras da autora:
Como la dimensión de ‘lo político’ siempre está presente, nunca puede haber una hegemonía completa, absoluta, no excluyente. En ese marco, las prácticas artísticas y culturales son absolutamente fundamentales como uno de los niveles en los que se constituyen las identificaciones y las formas de identidad. No se puede distinguir entre arte político y arte no político, porque todas las formas de prácticas artísticas o bien contribuyen a la reproducción del sentido común dado – y en ese sentido son políticas –, o bien contribuyen a su deconstrucción o su crítica. Toda las formas artísticas tienen una dimensión política (MOUFFE, 2007, p. 26).
Sendo assim, o projeto que aqui é apresentado, seguindo os elementos expostos, pretende, dentro da perspectiva de arquivo, através do registro/coleta identificar os atravessamentos que formam a poética do dissenso. Pretendemos com isso gerar uma reunião inicial de fragmentos que, por sua vez, gerarão, ao serem (re)expostos e distribuídos para outros colecionadores, possibilidades não lineares de leitura e construção de novos arquivos enquanto taxonomia de várias ordens.







[1] Dissertação defendida pelo autor em abril de 2013 no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2] Conceito defendido construído e defendido na dissertação. Disponível em: http://www.bdtd.ufes.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2469
[3] Apresentação que faz parte do projeto Concreto Pensado ocorreu no evento Casa.Lab Infinitas, disponível em https://www.facebook.com/events/545405838878172/.  Sobre o título da apresentação, a data, os números (12/12/2013) e a expressão latina (memento mori) servem como um tipo de indexação particular e pública.
[4] https://www.ufmg.br/museumuseu/bienal/jornal/museumuseu.pdf


REFERÊNCIAS

COSTA, Luiz Cláudio da. Poéticas do Arquivo: Dispositivos de coleção na arte contemporânea. X Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética (APCG); novembro de 2010; PUCRS. Porto Alegre: Edipucrs; 2012.

DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvin, 2003.
DEUTSCHE, Rosalyn. Agorafobia. Barcelona: MACBA, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Edições Graal, 2004.
________________. Ditos e Escritos vol. II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
________________. Ditos e Escritos vol. III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense Universitária, 2009.
LACLAU, Ernesto. & MOUFFE. Chantal. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso Books, 1985.

MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. CALLE14, Bogotá | Colômbia, volume: 4, número 4, p. 13 – 25, 2010.

MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.